segunda-feira, 9 de janeiro de 2012

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2. Colombo

Colombo: tuc-tucs em ação


O caminho do aeroporto até onde ficaríamos hospedados, num bairro à beira mar em Colombo, foi um mergulho de cabeça na diversidade cultural do Sri Lanka - nome derivado do sânscrito sri, venerável, e lanka, ilha - país territorialmente formado por uma ilha no Oceano Indico, abaixo da Índia, e por uma população aproximada de vinte milhões, dividida entre duas línguas oficiais: o cingalês e o tâmil. O inglês, herança do passado colonial do antigo Ceilão, também é falado, não por todos, mas a maioria tem pelo menos uma noção. Se quem é de fora entende o inglês que é falado, isso já é uma outra questão. Vale o que está escrito, tudo em três línguas.

Enquanto seguíamos o fluxo intenso em mão inglesa, num formigamento impressionante de carros, riquixás, ônibus, motos e bicicletas, nosso amigo anfitrião dava-nos as primeiras coordenadas acerca dos templos budistas, hindus, mesquitas e igrejas que sucediam-se pela janela do carro, num desfile inusitado dos principais ícones religiosos do planeta. Em geral, quem fala cingalês é budista, quem fala tâmil é hindu, os primeiros representando 70 por cento da população, os demais aproximadamente 15; uma minoria de muçulmanos e cristãos, equitativamente dividida, completa o caldeirão religioso do país. Gente há por toda parte, a qualquer hora, noite e dia: a cidade é alvoroçada, barulhenta, cheia de vida. Sinal de trânsito não existe, ou quase, só em alguns poucos cruzamentos. Já os guardas de trânsito, homens e mulheres, veem-se em toda parte, frequentemente em dupla, de uniforme ocre, calça de cós bem alto, cinturão preto, magricelos, enérgicos. Apitam e gesticulam muito: a impressão que dão é que no meio do caos, procuram desesperadamente chamar a atenção para que não passem por cima deles.

Se o sinal de trânsito é escasso, o mesmo não se pode dizer da buzina, tão indispensável quanto o próprio combustível: só se dirige buzinando, numa sinfonia coletiva permanente, mesclada a sons de músicas variadas, sempre em nossos ouvidos. O interessante é que se buzina até quando não há nenhuma necessidade e, em geral, os toques de buzina, são curtos, mesmo bem curtinhos, cadenciados. A razão disso talvez extrapole o aspecto mecânico da coisa e resida na simples constatação de que os motoristas buzinam menos para fazer pressão uns nos outros, mas sobretudo para autorizarem-se a passagem, como quem simplesmente diz – camarada, eu tô passando. E uma vez que todos se auto-autorizam a passagem em uníssono, o jeito é sair costurando em busca de uma brechinha aqui, uma ali, na base do bip bip. Mão e contramão, no fim das contas, dá no mesmo, é uma questão puramente subjetiva: a mão é de quem avança primeiro, mesmo em sentido contrário. O lado bom é que, lato sensu, ninguém está em infração, ou pelo menos não se sente ou se reconhece como tal. Os veículos passam de raspão, em ventania, e a ultrapassagem independe das condições de visibilidade. Para que visão quando se tem o bip bip? A buzina abre todos os caminhos, especialmente nas curvas. Impressionante é que, ao contrário de todos os prognósticos da razão, batidas não se veem. Mais impressionante ainda é que, seja qual for a conduta do motorista, ninguém insulta nem agride ninguém: mais do que um rito de passagem, o bip bip é um sinal de reconhecimento e respeito mútuos. O trânsito cingalês é uma síntese perfeita de caos com pacificidade e gentileza: vai entender. Como isso é possível? A explicação que me dei é a seguinte: quando todos se permitem igualmente tudo, a condescendência tende a se universalizar. 

Os riquixás –  os simpáticos tuc-tuc – na maioria nas cores verde, azul e vermelho, sempre muito enfeitados, com guirlandas nas cores branca, amarela e laranja, flores de plástico, adesivos, miniaturas de Buda ou Ganesha, por vezes de Nossa Senhora ou Jesus, transportam de tudo e a todos. Teoricamente, há lugar para dois ou, no máximo, três passageiros, mas na prática, a lotação depende da necessidade e camaradagem do freguês. O preço é sempre a combinar – e sobretudo – a combinar e a repetir o combinado tim-tim por tim-tim: two hundred rupees, ok? two hundred rupees, ok? Memória de tuc-tuc, sabe como é, melhor amarrar tudo direitinho antes. Famílias inteiras cabem dentro dele e mesmo não dando nem mais para respirar, vale a máxima do sempre cabe mais um: outro dia contamos oito. Nas motos, a máxima vale também: frequentemente vê-se o motorista, no mais das vezes sem capacete, com uma pessoa na frente, duas na garupa, criança de colo inclusive. E bip bip, naturalmente. O motor do tuc-tuc é um primor da engenharia mecânica operando milagres na mobilidade popular. Os motoristas nunca recusam passageiro e conhecem sempre o itinerário de onde se quer chegar, mesmo que não tenham a mínima noção disso:

- Ok, ok – repetem sempre balançando a cabecinha.
- Do you know where you are going? - indagamos.
- Ok, ok! - respondem. A interpretação é livre, depende de cada um. O melhor é achar que tudo vai dar certo pois, com a boa vontade de ambas as partes, acaba se chegando ao destino.

Os ônibus são numerosos e sempre lotados: as portas permanecem geralmente abertas, passageiros viajam sentados nos degraus ou de pé, olhar curioso para fora. Barras de ferro atravessam de ponta a ponta as janelas, impedindo que se pule: melhor não pensar no que aconteceria em caso de acidente ou incêndio. Alguns ônibus são coloridíssimos por fora, numa estética semelhante a do peace and love dos anos 60, com as cores do arco-íris, guirlandas de flores no vidro da frente e muitos adesivos - num deles lia-se: Allah I trust in you. O interior é menos lúdico, escuro, assentos duros, poeira, papéis espalhados, e o que não vai para o chão, às vezes é atirado pela janela.

Planejamento urbano – com exceção da área nobre de Colombo - é o mais democrático possível: cada um faz o seu. Construções desalinhadas, estilos os mais variados, padronização nenhuma. Calçada, às vezes tem às vezes não, mas quando tem, é tão estreita que serve só para sentar ou expor mercadorias no chão: a multidão anda mesmo na rua, do jeito que dá, engrossando junto aos vendedores ambulantes e burros-sem-rabo o salve-se quem puder no asfalto, sob a proteção dos deuses. Placas comerciais em profusão trepadas umas nas outras, letreiros gigantescos em cores berrantes, cartazes de filmes de cinema, outdoors de religiosos e políticos, uns e outros numa postura tão resolutamente devota que, por si mesma,  requer de nossa parte um mínimo de suspeição. O presidente da República então, este, impossível não ver sua cara: túnica branca feito uma entidade, estola vermelha por cima, sorriso e bigode – sua imagem é onipresente, seja na cidade, nas estradas, no interior, num culto obsessivo à personalidade muito semelhante a de um ditador. Ditadura no Sri Lanka? - perguntamos a nosso anfitrião. Nada disso, informou-nos: o Sri Lanka é uma democracia sólida, com alternância de poder. Ficamos pasmos. Mais pasmos ainda quando no réveillon, em mensagem de texto no celular, recebemos votos de feliz ano novo, assinado por Mahinda Rajapaksa, presidente do Sri Lanka, em inglês e cingalês.
        
A chegada à beira-mar, ao final de uma hora de trajeto desde o aeroporto, mostrou-nos um outro aspecto de Colombo: avenidas largas, edificações imponentes da época colonial – o antigo Parlamento - hotéis de luxo, dentre eles, o Galle, o mais antigo da Asia. Do apartamento onde ficamos hospedados, no vigésimo terceiro andar, o céu ainda claro, uma bela vista do mar - em vez de areia, um vasto campo de terra batida em frente, coqueiros, duas torres modernas ao longe fazendo lembrar as gêmeas de Nova Iorque. Depois de tomar um banho e descansar um pouco, um convite de nosso anfitrião: jantar num restaurante de frutos do mar, ao lado de casa - Hotel Cinnamon - com seu jardim exuberante, árvores gigantes, luzinhas azuis piscantes e um lago com carpas vermelhas. Provamos Arak – bebida alcoólica local à base de coco - pedimos peixe grelhado acompanhado de arroz com frutos do mar e brindamos, com um tinto da Africa do Sul, o encontro e a descoberta de Colombo, cujo nome, contrariamente ao que pensávamos, não tem nada a ver com o descobridor da América. De volta à casa, nos deitamos num colchão macio, vendo a cidade do alto, entre sons de bip bip, cachorros latindo, vozes na rua: de madrugada, Colombo não silencia. Exaustos, dormimos profundamente mesmo assim, acordando com os alto-falantes da mesquita chamando para a oração: era ainda escuro, cinco horas da manhã.



Colombo: esplanada de Galle

3 comentários:

Anônimo disse...

Gostei das vistas do Sri Lanka e das explicações que você deu sobre o país e sobre Colombo.
Continuo acompanhando.
abraços Marilia

dani cor de rosa disse...

Meninos
qdo vi as fotos de vcs pela primeira vez eu estava em Bodhgaya, estado de Bihar. E fiquei deslumbrada. Pensei, eles estao na parte boa, civilizada, instruida. Com mar, orla, luzes (eletricidade, meu Deus, que luxo), onibus, predios. Bodhgaya era uma multidao de pergrinos com outra multidao de pedintes profissionais, poeira que subia pelo ar e que virava lama qdo chovia, repleta de cycle riquishas, que tambem buzinam (os auto riquishas nao estavam autorizados a entrar na cidade devido a lotacao de pessoas) e corte de eletricidade diario. Como a vida pode ser diferente.

Amei a descricao do transito. Nunca vi tao precisa. Arrasou!

dani cor de rosa disse...

Entao pq chama Colombo? Eu tambem achava que tinha relacao com o descobridor da America, sei la.

E vale dizer que nas vilas em Bihar nao tem eletricidade. As estradas sao completamente escuras. Mas tem "olhos de gato" pelo chao que piscam, sinalizando as curvas. Outra experiencia.