quarta-feira, 7 de março de 2012

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14. Madurai Residency

 
 


Chegamos ao hotel, grande saguão, piso em mármore, elevador panorâmico no centro, painel colorido com figuras estilizadas: dançarina indiana, vaca enfeitada, sol radiante, gopuras, flores, oferendas, mãos em posição de namaste, cachos de banana e até um papagaio. O gosto eclético da Índia não tardou a se fazer notar. No chão, dentro de uma bacia cheia d'água, flores de cor amarela, vermelha e rosa formando um desenho; sobre o balcão da recepção, um Ganesha envolto na fumaça do defumador,  musiquinha tocando; ao lado dele, uma bandeja dourada com amostras disponíveis: balinhas coloridas, cristais de açúcar, corante vermelho para marcar a testa e essência de sândalo. Provei as balinhas, sabor de anis, perguntei o nome: sweet sombu. Sem que eu tivesse a clara consciência disso, dispunham-se naquele saguão de hotel os componentes fundamentais dos ambientes da Índia: cor, perfume, religiosidade, som, toque e sabor. Diferentemente do que acontece em qualquer outro lugar, na Índia, a gente não só entra nos ambientes: são os ambientes que entram na gente, pelos olhos, nariz, ouvidos, boca, pele. E, homem de fé ou ateu, pelo coração. A Índia é a experiência de uma invasão: sem pedir licença, ela envolve e adentra o corpo numa tomada sutil e violenta, mobilizando a todo tempo todos os nossos sentidos. Da exaltação à exaustão.

O quarto ainda indisponível, resolvemos aguardar no restaurante, onde o café da manhã ainda era servido. Na sala sombria em arcadas - toalhas, tapetes e estofados manchados, parecendo nunca terem sido lavados - tivemos nossa primeira experiência do “breakpast” indiano, diante de um menino e uma menina estrangeiros, cinco ou seis aninhos, sentados à mesa bem à nossa frente: ele mastigava bem devagar algo que a menina lhe pusera na boca, fazendo careta de nojo, fechando os olhinhos, franzindo a testa. Achamos graça: será esse nosso destino?  O buffet, praticamente o mesmo, viria a se repetir todas as manhãs ao longo de nossa viagem: sambhar (caldo apimentado de ervilha com legumes); idly (bolinho de arroz cozido a vapor, achatado, tipico do sul da Índia); vada (rosquinhas fritas de lentilha); dhosa (panqueca de arroz com batata apimentada); chapati ou naan (pão indiano feito na chapa: não leva fermento, apenas farinha e água; pode levar também queijo e outras coisas. Preferimos puro: feito na hora, quentinho, é irresistível). Aos que optam por não se aventurar no paladar indiano temendo repetir a careta do menino, o chamado continental breakfast oferece  torradas, manteiga, geleia, omelete, ovos fritos ou mexidos. Complementando o “breakpast”, suco, chá ou café. Destaque para o delicioso lassi (bebida refrescante à base de iogurte, suco de fruta e açúcar), em geral cobrado à parte, e do qual tornamo-nos assíduos consumidores.

Passadas duas da tarde, subimos finalmente ao quarto, ávidos de algumas horas de sono após varar a madrugada desde o embarque em Colombo. Os vidros empoeirados da janela acentuavam a sensação de calor, e a cortina torta com ganchinhos descarrilados parecia tão desfeita e exausta quanto nós. Sem muito exigir dela, tentamos ao máximo vedar a luz embaçada da tarde e a poeira da vidraça: contentamo-nos com um triste disfarce. Uma rápida chuveirada fria revigorou-nos um tanto, inundando por inteiro o banheiro sem cortina no chuveiro: indiano que se preza toma banho com balde de plástico, sentado num banquinho, também de plástico. Na Índia a gente experimenta o gosto de se festejar coisas antes impensáveis:

 
- Esse banheiro tem cortina no chuveiro! Que maravilha! Oba, oba!

Deitamo-nos sonolentos sobre lençóis duros e bem esticados que à primeira vista escamoteavam a curvatura do colchão, o zunido do aparelho de ar condicionado misturando-se ao barulho do trânsito e da cidade. Por um segundo achei que fôssemos embalar no sono, quando subitamente o ar condicionado parou: falta de energia, informou-nos o recepcionista ao telefone. Aguardamos um pouco: demasiado calor, abrimos a janela. Foi então que nos demos conta da barulheira, antes, lá fora, ora, janela aberta, cá dentro. Interruptor ligado, tudo acendeu, menos o ar condicionado. Tentamos, nada. Gira botão para lá, para cá, tira e põe na tomada, aperta o comando: nada. Ligamos para a recepção, bateram à porta: um rapaz entrou, mexeu no aparelho, voltou a funcionar. Ah, que bom, deitamo-nos de novo. Minutos depois, desligou: a energia caiu novamente. O que fazer? Indagamos ao recepcionista: 

- No electrical current, Sir – confirmou.  

- Do you think it will take too long? - procuramos nos inteirar melhor.
- I don't know, Sir... that's normal, usually current ends after come back - respondeu-nos. 

Entendemos que, normalmente, a energia cai, depois volta, não se sabe quando. Mais tarde viemos a constatar que “apagão” é frequente em muitas cidades da Índia. E normal. E a vida prossegue: a Índia tem energia de sobra. Menos o nosso aparelho de ar condicionado: toda vez que a energia voltava, o aparelho não armava sozinho, nem sob nossas mãos insistentes - só com as do rapaz do hotel que, como um herói que é convocado à guerra, fazia idas e vindas ao nosso quarto, garboso e sorridente, cabecinha balançando para os lados sempre a repetir: ok, ok, sir. Nesse duplo vai e vem da corrente elétrica e do rapaz, no meio do calor e do barulho, o sono abateu-se sobre nós concedendo-nos algumas horas de trégua: acordamos com os alto falantes da mesquita colada ao hotel bradando Allah.

Já era noitinha. Nova chuveirada, banheiro de novo alagado. Subimos ao terraço do hotel: céu escuro, vento quente, atmosfera de torpor. Aguardamos uma mesa do restaurante vagar. Madurai trepidando lá embaixo num emaranhado de gente e veículos zarpando em alta velocidade, faróis riscando o asfalto ao som estridente de buzinas. Eu que achara o trânsito cingalês um caos, duvidei por um instante de minha própria percepção, ri de minhas próprias certezas incertas: qual o limite do caos? Existe fronteira entre as coisas e as sensações? Madurai: eis-nos debruçados sobre o corpo da Índia, velado pela noite, desassossegado, indócil, trêmulo. A fera rugindo lá embaixo, chamando-nos para um corpo a corpo, nossa ansiedade atiçada, a boca flamejando à mesa do jantar, sob luzes de néon e estrelas pendentes multicoloridas.





2 comentários:

Rohit disse...

First of all , it is very well written. I am an Indian by birth and have never visted Madurai before. You move from state to state in India , its like you are moving from a country to another in Europe. The breakfast was a very typical Tamil ( SOuth Indian) breakfast . Its true that you have to have the pellet to taste it and appreciate it. It is savory , sour and tangy..Hot but less spicy .. See, in india , they use buckets , and thats because the policy is to save water. :) So people use buckets, for a person two buckets are more than enough and you end up wasting less water than 5 minutes of continuous shower. If you will go to rural area , you will find metal buckets which are amazing and a wooden stool to sit while you shower (I mean bath) ...India is a developing country, but sometimes there are problems with electricity as they have to shut down for couple of hours, so that they can render an equal distribution to other areas..its common ..and remember its seldom you will find centrally conditioned rooms..We believe more in natural air circulation and a fan on the roof.. :)

Anônimo disse...

Claudio querido
Que maravilhosa descrição. Adorei! Tem mais? Bon voyage!!!
Bjs. Lenah