sábado, 14 de janeiro de 2012

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3. Pinnawala e os elefantes



Levantamos às cinco e meia. Tínhamos hora marcada às 6h15 com um motorista que nos levaria de carro até Kandy - distante 115 km de Colombo – principal centro religioso dos budistas por causa de um templo sagrado, o qual guarda uma relíquia: o dente de Buda. Por essa razão o templo é chamado de Tooth Temple. Mas antes de chegarmos ao dente, falaremos dos elefantes.

No meio do caminho de Colombo a Kandy há um orfanato de elefantes, o Pinnawala.  Às 9h, os bebês elefantes tomam leite na mamadeira, e pouco mais tarde, são levados juntos com os elefantes adultos para um banho de rio. O motorista chegou atrasado, às 6h50: o velório do sogro serviu-lhe de desculpa. Para compensar o atraso e evitar que perdêssemos o mamar dos elefantes, foi voando pela estrada, àquela hora já formigando num ritmo barulhento e frenético. Pedimos que fosse mais devagar, uma, duas vezes, mas de pouco adiantou. Yes, yes, dizia-nos como se estivesse dentro de uma bolha, ouvindo um tributo a Fred Mercury. Plantações de arroz verdinhas e coqueirais viçosos conseguiam, por alguns segundos, desviar nossa atenção da estrada, mas logo éramos puxados de volta às ultrapassagens de nosso motorista desenfreado, ao som de We are the champions. Nove em ponto, chegamos.

Uma pequena multidão apressava-se ante ao portão de entrada formando duas filas: uma de cingaleses, outra de estrangeiros. Preços diferenciados também: se o ingresso do estrangeiro custa 200, o do cingalês custa 10. Isso foi uma novidade para nós, e vale para todos os lugares públicos onde se cobra ingresso. Na Índia, segundo nos disseram, mesma coisa. Por causa disso, há sempre muita gente do próprio país nos pontos turísticos: o orfanato de elefantes não foge à regra. Passamos o portão: uma vasta propriedade, terreno descampado ao centro, vegetação exuberante ao redor, coqueiros, cheiro de estrume. Andar ligeiro para não perder o mamar dos bebês, reunidos numa espécie de estábulo - passinho pra cá, passinho pra lá, um jato forte de xixi de vez em quando - aguardando as mamadeiras encherem-se de leite para serem esvaziadas logo em seguida. Com a ajuda dos funcionários - naturalmente, em troca de algumas rupias - os  visitantes empunhavam a mamadeira e realizavam, no olho a olho, a tarefa maternal. Marcio e seu baby, difícil decidir quem jubilava mais. Os humanos riam-se, soltavam gritinhos, faziam carícias, tiravam fotos; os bebês chegavam perto, deixavam-se acariciar, ofereciam a tromba, riam-se a sua maneira. Fiz uma descoberta importante: os elefantes sorriem.

Em seguida, os elefantinhos, em fila, juntaram-se aos adultos, reunidos no imenso descampado coberto de galhos e folhas de jaqueira. Contei uns cinquenta. O mais velho de todos, cego, imóvel, solitário, sob um telhado ao abrigo do sol. Caminhávamos entre eles, apalpávamos-lhes o couro, recolhíamos os galhos de jaqueira do chão e oferecíamos-lhes em alimento. Nós no meio de cinquenta elefantes, lado a lado, pisando o mesmo chão. A proximidade com o elefante é surpreendentemente muito emocionante. Algo ancestral parece estar contido em sua massa, como se carregasse a história de todos os homens: não há quem não traga no seu imaginário mais remoto um marajá montado num elefante.

O elefante não nos assusta nem nos amedronta: ele nos remete aos primórdios de nossa vida, lá onde tínhamos pés e mãos na terra, em companhia de sapos, formigas, besouros. Mas, paradoxalmente, o elefante causa-nos uma profunda estranheza, pois nele não se nos espelhamos - o elefante não nos propicia idealizações, é o ponto cego de nós mesmos. A pele fosca, rugosa, manchada, faz dele um ser sem artifícios, o que para nós, humanos, é impossível, inexistente. O elefante nos é radicalmente estranho justamente por ser o monumental contrario de nós, exposição bruta, total. O elefante tem o peso e a gravidade do que é, não a leveza do que se sonha, deseja, imagina. Ele é opaco na medida exata da transparência do real: o elefante não esconde nada, segredos não tem, fingimento desconhece. Ele é todo inocência. A docilidade que lhe reconhecemos e tanto nos fascina resume-se nisso: o elefante não tem medo de ser, ele pisa em bloco a terra firme como nós já fomos capazes um dia.

Hora do banho. Os funcionários indicavam-nos a direção do rio, fora da propriedade, do outro lado da estrada - a manada seguiria logo em seguida.  No caminho de terra batida, ruela estreita abaixo, lojas de souvenir exibiam quintilhões de elefantes esculpidos na madeira, no marfim e no coco, dos mais simples aos mais trabalhados, com incrustação de pedras ou metais, enquanto vendedores afoitos disputavam entre si, a cada passo nosso, os lucros elefantinos. Lá embaixo, um rio largo de águas calmas e pouco profundas, muitas pedras, margens esbanjando verde e coqueiros. Debruçadas sobre o rio, as varandas amplas e lotadas dos restaurantes ofereciam visão panorâmica, entre o corre-corre dos garçons e os vapores da cozinha. Meio-dia. Sentamo-nos sobre a pedra, à margem do rio, águas sussurrando, pássaros brancos voando em bando, mormaço forte, pesado, vento nenhum. Quando o mundo parecia adormecer:

- Rat! Rat! Rat! - gritavam os funcionários, batendo suas varas no chão, tocando os elefantes.

Os elefantes foram chegando, socando a terra, levantando poeira, provocando o maior rebuliço, dentro e fora do cordão de isolamento. Quão impressionante é ver uma manada de elefantes caminho abaixo, rio adentro! É extasiante vê-los refrescando-se, levando água até a boca, enrolando e desenrolando a tromba, deitando-se de lado, levantando uma perna. Os elefantinhos então, brincam entre si, enroscam a tromba dando beijinhos, roçam-se uns nos outros, abanam o rabo, entram por entre as pernas dos adultos, num esconde-esconde que faz qualquer um de nós criança de novo.  

Quase duas da tarde. Alguém acenava-nos da varanda do restaurante com os dois braços, agitando um pano numa mão e sorrindo: era o garçom a quem fizéramos o pedido do almoço, meia hora antes, anunciando a chegada do prato. Pensamos até que tivesse se esquecido. Subimos à varanda: talheres à mão, olhos nos elefantes dentro do rio.


3 comentários:

Vanessa Cardoso disse...

Que coisinhas mais lindas!

dani cor de rosa disse...

Nossa, que experiencia incrivel! Esse contato intimo com a realidade, sem subterfugios é realmente fascinante. Pelo relato de vcs me senti humana de novo. Algo como de volta no lugar. Mas o que intriga é pq elefantes tem olhos tao pequenos se sao tao grandes. Enfim...

Anônimo disse...

Nas leituras que vou fazendo da sua Viagem à India, adorei tudo o que você diz dos elefantes. Filosofar com e não sobre os elefantes, nunca tinha visto, e no entanto, você o demostra ! E como Lacan dans "la Troisième", a sua terceira conferência feita em Roma em 1974, e publicada no último número da revista da Cause Freudienne, quando diz ele que : a psicanálise só se demonstra, bela ilustração ! ...
Até mais, Claudio, e bom dia.

Marie-Christine