quinta-feira, 16 de fevereiro de 2012

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11. Unawatuna





Três dias em Unawatuna, uma praia a 130 Km de Colombo, marcaram nossa última etapa no Sri Lanka, antes do embarque para a Índia. Um trecho da estrada, ainda nos limites da cidade, margeia o mar em linha reta rumo ao Sul, juntamente com uma linha de trem. Lado a lado, o mar, a estrada de ferro e a rodovia. Nada mais, nem ninguém. Chama a atenção que, com um litoral magnífico como esse, a cidade parece fazer pouco caso do mesmo, como que dando-lhe as costas: não há propriamente uma orla, uma praia, uma calçada. E como cingalês não entra no mar, só os olhos de quem passa de carro ou de trem mergulham na imensidão azul. Quando a estrada abandona o mar, segue por dentro, até engatar numa pista de mão dupla - asfalto e sinalização excelentes - cortando prados e montanhas verdinhas.

Era noitinha quando chegamos a Unawatuna: casa antiga, rústica, cheia de pequenos cômodos, piso em cimento vermelho, móveis em madeira escura, fotos de família nos porta-retratos, enormes pernilongos, varanda, vasto jardim, coqueiral, luar. Uma pequena comunidade internacional – colegas de nosso anfitrião, a maioria a serviço temporário no Sri Lanka - dividia a casa alugada por alguns dias. Feita a repartição dos quartos – fomos agraciados com um charmoso mosquiteiro - saímos todos de tuc-tuc para jantar numa cidadezinha próxima, chamada Galle (mesmo nome da esplanada de Colombo), com ruelas de arcadas e casinhas que pareciam de mentira. O restaurante, um aconchego só: pátio interno, plantas de verdade, luminárias artesanais, à meia luz, com móveis lindamente entalhados na madeira. O jantar demorou muito a chegar – mais do que o costumeiro aqui - quase o tempo da fome ir embora. Lá pelas tantas, faltou energia, o que parece ser frequente no Sri Lanka: lampiões foram acesos – não à querosene, mas à pilha, creio - irradiando uma luz fluorescente de consultório dentário, mergulhando-nos subitamente numa atmosfera fria e sem graça. Não há aconchego que resista. Felizmente a energia voltou, as luminárias coloridas reacenderam, a comida chegou e a magia da noite voltou a reinar.

Durante o jantar, batemos papo com uma simpática japonesa sentada ao nosso lado, que mal tocou nos graúdos camarões que vieram em seu prato. Chegado o horário nipônico, a japonesa despediu-se e foi embora, ficando os camarões: antes que deixassem a mesa também, fomos garfando um a um, furtiva e deliciosamente, até liberar o prato liso aos cuidados do garçom. Num país de pescadores, desprezar camarões pareceu-nos um sacrilégio. Quase uma da manhã Saímos do restaurante, perambulando por ruelas silenciosas até o muro de pedra que separa a cidade do mar: lá do alto, na imensidão escura, o vento assobiante e morno a chacoalhar as estrelas, palmeiras, ondas, nossos próprios corpos unidos. Lembrei de O pescador de Pérolas, cuja estória se passa na costa do Ceilão (atual Sri Lanka), e bem pressenti que em algum lugar da ilha Nadir devia estar cantando:

Je crois entendre encore caché sous les palmiers,
Sa voix tendre et sonore comme un chant de ramiers
Oh nuit enchanteresse divin ravissement
Oh souvenir charmant, folle ivresse doux rêve

A manhã veio azul e ensolarada. Depois do café, fomos direto para a praia onde nos deixamos ficar preguiçosamente até depois do pôr-do-sol. No caminho de terra, um artesão fabricando máscaras fabulosas, um cingalês com ar lendário, uma cingalesa sentada no muro, acanhada como a flor em botão, toda candura da Terra a desabrochar num sorriso. Unawatuna: uma faixa extensa de areia branca e coqueiros, o oceano, Índico no nome, turquesa na cor. Na praia mesmo, lagarteando ou na água, transparente e morna, só estrangeiros, em grande parte da Europa: enquanto estes procuram ganhar um pouco da cor cingalesa, os cingaleses procuram ganhar um pouco do dinheiro europeu. Bares funcionavam a todo vapor ao som do reggae - Bob Marley vive no Sri Lanka, podem acreditar! homens descascavam frutas tropicais à vista do freguês; outros faziam massagens; uns, mais ousados, insinuavam whatever you want to smoke; vendedoras estendiam colchas multicoloridas ao vento, concorrendo em ondas com o mar e em brilho com o sol. Enquanto isso, um barco tipicamente cingalês balançava feito um barquinho de papel, uma mulher de sari molhava os pés, outra, muçulmana, andava a passos largos com o bebê no colo. O sol forte foi amaciando até tocar o horizonte, alaranjando o céu. A noite chegou, violeta e linda, noite de réveillon.

Marcamos de nos reunir todos numa festa em Galle, num hotel tradicional, de arquitetura muito bonita, no alto de um rochedo, jardins e terraços avançando para o mar. Quando chegamos, estranhamos não haver ninguém à entrada: passamos direto, subimos a escadaria que dava para o jardim, e caminhamos em direção às luzes refletidas na copa das árvores, burburinho no fundo. Um cingalês baixinho, pernas curtas e meio atarantado, veio às pressas ao meu encontro como que em caso de emergência:

- Party, party? - indagou afobado.

- Yes, Sir – respondi.

Ele, numa solicitude mais do que simplória, sem verniz algum, multiplicou pernadas à minha frente, e com o braço esticado, indicador apontado para a recepção, repetiu feito uma gralha:

- Ticket, ticket, ticket!

Olhei para o Marcio e disse:

- A gente chega ao Copacabana Palace do Sri Lanka para uma festa de réveillon e é recepcionado assim: Ticket, ticket, ticket!  

Rimos muito, atrás do perna curta, em busca dos tickets: de bandeja, “ticket, ticket, ticket!” - acabou virando um bordão, muito recorrente entre nós durante a viagem, especialmente na hora do breakfast, onde a maior  preocupação dos garçons era quase sempre a de anotar numa ficha o número do nosso quarto e, uma vez cumprido o protocolo, pareciam estar de folga, esquecendo-se de todo o resto.
A festa, ao ar livre, começou meio xoxa, desanimada, um punhado se arrastando na pista de dança ao ar livre, ao som de um DJ tocando uma espécie de musica eletrônica mesclada com rap, o todo ensurdecedor. Mal dava para conversar, principalmente entre estrangeiros: japoneses, indianos, suíços, americanos, franceses, coreanos, brasileiros, equatorianos, e até mesmo uma iraniana que dizia, com um vozeirão rouco e se tremelicando toda, ser louca por bateria de escola de samba e pelo corpo dos homens brasileiros. Que Allah não a tenha escutado, nem visto. Cingaleses, só o pessoal do hotel e dois rapazes que se tocavam e apalpavam bem mais intimamente do que costumamos ver nas ruas daqui. Faltando dez para meia-noite, a musica mudou, mais leve, festiva: na virada, à beira do rochedo, rojões foram soltos pelos garçons, fogos de artifício espocavam singelamente ao longe, o mar servindo de espelho, gritos, risos, beijos, abraços. A noite prosseguiu embalada por garrafas borbulhantes e fumaças com aromas diversos, até voltarmos para casa bem à moda cingalesa: num tuc-tuc abarrotado, nós e o motorista, ao todo seis. Mais tarde, nos demos conta de que nem era tanto assim: na Índia, chegamos a contar onze passageiros num tuc-tuc. Sempre cabe mais um. Despedimo-nos do pessoal. Antes de ir para casa, fomos até a praia de Unawatuna, onde a festa rolava na areia, basicamente entre homens: as cingalesas deviam estar em casa presas às tranças. Enquanto rapazes faziam malabares com fogo à beira-mar, molhamos os pés, pulamos sete ondas e fizemos nossa fezinha para Iemanjá. Só então o ano novo começou: já era véspera de nosso embarque para a Índia.



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