Acordamos de um sono longo e reparador, nem mesmo interrompido pelos alto-falantes da mesquita, o sol já alto sobre a esplanada de Colombo, onde, ao longe, avistávamos pessoas caminhando à beira do Oceano Índico, os rapazes de calça comprida e camisa de manga, as moças de sari, tranças e algumas sombrinhas. O tempo do café da manhã na varanda, algumas anotações no Diário, e logo saímos às ruas: queríamos visitar, ainda de manhã, um famoso templo budista, o Gangaramaya. Um tuc-tuc levou-nos até lá, contornando o lago de Colombo, dando-nos antes a ver de longe, dentro do lago, um outro templo budista - o Simamalaka - uma ilha artificial em formato quadrangular, cercada de dezenas de budas em bronze, todos sentados e voltados para o centro. A centena de figuras de Buda que vira na véspera no meio da mata, e as que ora via refletidas no espelho d'água, levam-me a pensar que a representação de Buda parece buscar unidade na multiplicação de sua imagem. Uma metáfora, talvez, de sua reencarnação e da perenidade a que sua doutrina aspira.
A dois passos dali, o templo de Gangaramaya, tão interessante quanto heteróclito. Na fachada, placas em bronze trabalhado representam fases da vida de Buda, e no pequeno jardim à entrada, onde cumprimos o ritual de ficar descalços, dentre várias esculturas em granito, uma exibe seios redondos e salientes. A primeira sala, um labirinto de vitrines empoeiradas, abarrotadas de relógios, joias, óculos, cristais, quadros, porcelanas, fotos de celebridades em visita ao templo, mais parecia uma feira de antiguidades. Objetos em ouro, prata, dentes de elefante, dragões, vasos chineses, luminárias, esculturas em bronze, dentre as quais uma, radiante: Buda montado num majestoso pavão. Perguntei se estavam à venda.
- No Sir, there are donations – respondeu o velhinho que tomava conta, que logo nos conduziu até um pequeno altar de Buda, amarrando-nos uma fitinha colorida no pulso, fazendo uma reza – no templo de Buda, um momento Senhor do Bonfim. Um cesto cheio de rúpias aguardava nosso agradecimento: thank you very much, e saímos de fininho. O fundo da sala abre-se a uma arquibancada ao ar livre, com dezenas de Buda em tamanho natural, sentados em posição de lótus: mais um impressionante efeito de multiplicação.
O interior do templo propriamente dito é um barroco só: pinturas em profusão, teto e paredes, cores quentes – amarelo, vermelho, laranja - dourações em toda parte. Enquanto nos templos hindus a atmosfera é lúdica e fantástica, e os fiéis aos deuses se entregam de corpo e alma, aqui a solenidade impera, o comportamento é contrito: a impressão que se tem é que, em vez do corpo transbordar como fazem os hindus, ele se recolhe numa ascese corporal. Um Buda monumental no altar, anjos esculpidos pairando ao seu redor em atitude de veneração, vasos em prata pousados no mármore do chão junto aos fiéis. Gangaramaya é, na verdade, um complexo formado por pavilhões cada um num estilo, ao redor de um pátio fresco, à sombra de árvores frondosas, belas orquídeas, a tradicional stupa ao centro, perfume de incenso, uma mesa de oferendas, chamas queimando dentro de cocos, como nos templos hindus. Para surpresa nossa, deparamo-nos com dois elefantes que tomavam banho num tanque: imaginávamos que tal cena só fosse possível dentre os fiéis de Ganesha. Engano nosso: disseram-nos que os elefantes participam de procissões nas celebrações budistas. Enquanto aguardam o dia de sair às ruas, dividem tranquilamente o pátio com monges de cor laranja, fiéis e visitantes, atraindo nossa atenção juntamente com um casal de noivos, em traje de casamento, fazendo pose para o álbum de fotografias. Dentre as árvores, uma enorme figueira, denominada Bodhi Tree ou Ficus religiosa – a árvore da iluminação. Fiéis faziam pedidos amarrando pedacinhos de pano coloridos nos galhos, davam voltas em torno de seu impressionante tronco cheio de raízes, uma cumbuca d'água às mãos, regando-a ao final. Por que a figueira?
Consta, de acordo com a tradição budista, que há mais de 2500 anos, depois de meditar por 49 dias sob uma figueira, em Bodhgaya, na Índia, um príncipe de nome Sidarta teria alcançado a iluminação – o nirvana – um estado de plena consciência acerca das causas do sofrimento humano. Sidarta tornou-se então Buda, para quem tudo se resume a uma verdade: o sofrimento tem como causa o desejo ao qual o homem está assujeitado; libertando-se do desejo, o homem pode libertar-se do sofrimento. Para tal libertação, Buda exorta seus discípulos a seguirem o que ele chama de “nobre caminho óctuplo”, ou seja, oito práticas que conduzem à cessação do sofrimento: correção do pensamento, da palavra, da intenção, da ação, do modo de vida, do esforço, da atenção e da concentração.
Uma outra estória conta que a árvore original em Bodhgaya foi cortada pela esposa do imperador Ashoka, enciumada pela devoção do marido ao budismo. O imperador deu vida nova à figueira, regando suas raízes com leite e colocando uma cerca ao redor. Talvez o ritual de se regar a figueira venha daí. Seu filho - discípulo de Buda também – trouxe uma muda para o Sri Lanka, onde a árvore cresceu e se desenvolveu. Mais tarde, uma muda foi levada de volta para Bodhgaya, de tal maneira que a árvore atual é da mesma linhagem da original. Acredite quem quiser.
Procurei por Marcio: estava dando voltas na figueira, cumbuquinha d'água na mão, pausa para a rega, sorriso iluminado. Ante um sorriso daquele, Buda teria se iluminado também.
Bodhi Tree ou Ficus religiosa: a árvore da iluminação |
Um comentário:
Que belo texto! Realmente iluminado!
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