A saída do templo, lavamos os pés e nos misturamos à multidão nas ruas: moças de longas tranças e sombrinha, monges budistas carecas de sombrinha também, rapazes de mãos dadas conversando sem pressa no asfalto, alheios ao nervosismo dos tuc-tucs e ao ronco dos velhos ônibus.
No mercado municipal, frutas e legumes faziam, numa fartura de encher os olhos e dar água na boca, outro festival de cores: do interior do templo à luz do dia, tudo é cor no Sri Lanka. No ziguezaguear das bancas, uma parada aqui, uma provinha ali: rambutãs vermelhíssimas transbordando dos cestos, uvas jorrando em gordos cachos, melancias em tamanho reduzido, mexericas azedas, carambolas rolando desassossegadas por cima das azeitonas.
Logo adiante, bazares vendendo de tudo – utilidades domésticas, produtos religiosos, tecidos, saris, henas, bolsas, sandálias, colares, traquitandas mil -, na parte superior, um mercado de roupa a céu aberto e montanhas de pano sendo mexidas e remexidas sob imensas tendas. Seja nas ruas, nos bazares ou nas tendas, cingalês é bom de prosa: por onde passamos, tudo é motivo para puxar conversa, começando pelas nossas correntes – nice style, nice chain, it's gold? - e encadeando a seguir: wich country? First time in Sri Lanka? Do you like? Where are you going?
Direto ao Queen's Hotel. Almoço cingalês ligeiro, lassi com banana, um mergulho na piscina, tuc-tuc de volta à estação. Uma fila longa diante do único guichê - será que vai ter lugar para todo mundo? - momento de suspense. Pedi licença, indaguei o atendente, um balanço de cabeça pareceu dizer sim. O jeito foi esperar e entregar para Ganesha: minutos depois, bilhete de terceira a mão, um velhinho curvado à entrada da plataforma obliterou nosso destino para Colombo.
Difícil foi encontrar um assento. Os vagões de terceira classe já estavam tão cheios que não cabiam nem a ideia de entrar neles. Resolvemos tentar a sorte de um lugar, indo em direção aos de segunda, ainda bem vazios: quem sabe alguém perde o trem? Nunca se sabe. Os passageiros foram pingando e, lentamente, os lugares foram sendo ocupados, sob ventiladores de teto que giravam mais do que ventilavam. Já passava da hora, alguns assentos ainda vagos. Sorte nossa? Que nada. Nosso plano teria dado certo se o trem saísse na hora: a lógica do “nunca se sabe” parece só funcionar na base da pontualidade britânica. Em Kandy, nosso trem parece ter esperado todo mundo chegar para só então dar o apito. Para alegria dos ambulantes que viajam com suas carrocinhas sobre a plataforma ao longo do trem, abastecendo a longa espera da partida, com biscoitos e refrigerantes passados pela janela.
Finalmente o apito, nós dois de pé no compartimento entre vagões, à saída do banheiro. Como aqui as portas dos trens permanecem abertas durante a viagem, os degraus servem também de assento, tão ou mais disputados do que as janelas: o desconforto é recompensado pelo horizonte que proporcionam. A paisagem é das mais lindas: o trem vai descendo a serra num traçado sinuoso no coração da mata verde, descortinando entre bananais e coqueirais, vales profundos cobertos de floresta. Nas curvas, um colar de cabeças de fora, braços, troncos, pernas, às vezes, o corpo inteiro, dà a ver que a noção de perigo é mesmo muito relativa, eu diria até, cultural. No cruzamento de dois trens, acenos, brincadeiras, risadas de ambas a direções. Como o percurso é muito montanhoso, uma sucessão de tuneis fecha a cortina ao verde num só golpe para, segundos de breu depois, abri-la novamente, numa alternância de sombra e luz que faz nascer aos olhos um verde novo e mais intenso a cada vez.
Na planície, arrozais inundados d'água, brotando eretos e viçosos, refletiam garças brancas em revoada. Na solidão da mata, uma casa coberta com folhas de palmeira aqui, outra bem distante ali, os deuses sempre por perto: todo casebre tem direito a um templo enfeitado com guirlandas de flor amarela sob a copa das arvores. Na roça familiar, casais acocorados cavucam a terra com as mãos, ele de sarongue, ela de sari, ambos descalços. Quase não vimos maquinário: o trabalho da terra se dà no contato bruto e direto de pés e mãos. No meio do nada, uma mulher equilibrando um pote de barro sobre a cabeça, num caminhar sereno, colorido, solitário, sabe Deus quão longe. Aonde vai? Não sei. Só uma certeza: nunca vi elegância maior.
Na planície, arrozais inundados d'água, brotando eretos e viçosos, refletiam garças brancas em revoada. Na solidão da mata, uma casa coberta com folhas de palmeira aqui, outra bem distante ali, os deuses sempre por perto: todo casebre tem direito a um templo enfeitado com guirlandas de flor amarela sob a copa das arvores. Na roça familiar, casais acocorados cavucam a terra com as mãos, ele de sarongue, ela de sari, ambos descalços. Quase não vimos maquinário: o trabalho da terra se dà no contato bruto e direto de pés e mãos. No meio do nada, uma mulher equilibrando um pote de barro sobre a cabeça, num caminhar sereno, colorido, solitário, sabe Deus quão longe. Aonde vai? Não sei. Só uma certeza: nunca vi elegância maior.
Mais adiante, um templo budista e sua arquitetura tradicional arredondada em forma de sino - a stupa - com arremate alongado, em geral em metal dourado, na ponta. As stupas – nascidas na Índia - eram originalmente relicários onde se guardavam as cinzas dos mestres budistas, incluindo Buda. No Sri Lanka vemos stupas por toda a parte, sempre com uma imagem de Buda. No meio da mata verde, a visão desse templo causou-me forte impressão: uma enorme estátua de Buda, seis metros ou mais, de pé, ao lado de uma frondosa figueira, frente a uma centena de estátuas menores, nas cores laranja e amarelo, tamanho maior do que o natural, representando mestres budistas - ou quem sabe, o próprio Buda - em fila indiana, equidistantes uns dos outros, parados, em posição de sentido. De longe, na velocidade do trem, por um segundo, tive a visão de um pelotão militar, o qual fez-me lembrar dos milenares soldados chineses em terracota. Buda, de certo, há também de ter seu exército. À medida que tudo isso ia passando lá fora, no vagão ao lado, moças cingalesas de tranças compridas, algumas bem meninas, cantavam e dançavam batendo palmas, numa alegria tão verde e cheia de viço que parecia ser o próprio canto da mata.
Chegamos à estação Colombo Fort ao cair da tarde. Um tuc-tuc completou a volta à casa, esplanada de Gale, céu rosado pelo Sol poente no mar. Depois de um banho, deitei-me um pouco, devo ter caído no sono. Acordei na primeira vez com o alto-falante da mesquita; na segunda, com Marcio baixinho ao meu ouvido dizendo que nosso anfitrião marcara de jantarmos num restaurante japonês com uma colega - de mãe japonesa e pai indiano – a fim de nos dar dicas sobre a Índia. Foi só descer o elevador: o restaurante encontrava-se ao lado. E a Índia também. A moça, um pouco atrasada, não tardou a chegar: bonita, desenvolta, sensual, entrou de sola no assunto, num inglês fluente com sonoridade de japonês:
- I love India, you know, it's my country... but sometimes, I love India and I hate India... I really do! I don't know, some India I love, some India I hate... But I love India, I really do, it's lovely! – disse-nos às gargalhadas numa formulação aparentemente leviana mas cuja estrutura pareceu traduzir a própria essência da Índia: o paradoxo. O bate-papo prosseguiu, entre sushis e saquês, estórias engraçadas, dicas interessantes, e uma frase que levamos conosco na bagagem:
- India is not dangerous, it's intense. But you should be careful, it can be pushing, very pushing.
Kandy e o trem ficaram para trás. Índia à vista, intense e pushing.
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